sexta-feira, 6 de abril de 2012

A questão quilombola para além do artigo 68

Quando se fala em comunidades quilombolas poucos se perguntam qual sua verdadeira definição, mais do que isso, poucos averiguam se a definição posta legalmente tem o significado real do que seja um quilombo. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias assevera em seu art. 68 que é reconhecida a propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades dos quilombos. Mas como reconhecer a propriedade definitiva se não há um conceito definido?

Daí parte-se não só para uma pesquisa de dicionário, mas um verdadeiro estudo histórico e verdadeiramente antropológico. Pois fora do senso comum, que limita o quilombo a áreas de refúgio e concentração de escravos, percebe-se que a formação dessas comunidades tradicionais extrapola o conceito de regiões oriundas da fuga de escravos e abrange comunidades negras que se formam através da doação, da compra de terras pelos próprios escravos, como também pela conquista do território através da prestação de serviços em tempos de guerra. Quilombo como o de Palmares se constituiu em um verdadeiro Estado Africano em pleno território brasileiro, graças ao seu sistema de organização. Mais do que um espaço de ocupação de ex-escravos ou de descendentes de escravos, os quilombos se constituíram em bases de sobrevivência e suas reminiscências trazem consigo esse mesmo fim, dado a história de omissão e exclusão de direitos por parte do Estado brasileiro.

Uma das primeiras menções sobre quilombos vem do Conselho Ultramarino Português em 1740, quando os conceitua como “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões neles”. A partir da descrição, o Conselho estabelece requisitos para que seja distinguido um grupo de escravos de um quilombo. Ainda também, há resquícios históricos que impõe penas para os que se agrupavam dessa maneira, uma dessas punições era marcar no escravo um “F”com uma espada aquentada.

Mas o buraco é mais profundo, o Estado brasileiro sempre tomou posições que inviabilizaram, por exemplo, o acesso à terra pelos escravos. Quando soa as primeiras “conquistas” abolicionistas, como a Lei Eusébio de Queiroz, o legislador brasileiro logo aprova um conjunto de leis que estabeleciam a compra como único meio de acesso à terra, esta chamada de Lei de Terras, que fora promulgada 14 dias após a “Lei para inglês ver”. Assim, não foi a canetada de Isabel que permitiu uma melhor qualidade de vida dos negros, pois eles continuaram sem condições de sobreviver e além mais sem a possibilidade de desenvolver em terras devolutas alguma renda, pois a compra era impossível para quem mendigava um pão.

O tempo passa, mas no Brasil pouco é feito. Quando Ulisses dá o grito conclamando a Constituição Cidadã, talvez Penélope acreditasse no seu devaneio, mas muitos tinham a certeza que seria mais uma lei a empoeirar dentro de um baú. Sim, foi uma conquista o art. 68 da ADCT, promulgado em 1988, cujo decreto regulamentador só adveio quinze anos depois, em 2003, que mesmo assim sofre uma ADIn requerida pelo antigo Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM). Sim, é uma conquista um estado como a Paraíba que tem 35 comunidades quilombolas identificadas, mas apenas uma teve sua propriedade definitiva outorgada. Sim, são conquistas as políticas públicas para quilombolas no Brasil que distribuem migalhas a comunidades historicamente excluídas de investimentos.

Estende ao processo histórico de exclusão a burocracia submetida às comunidades para que tenham direito aquilo que está posto em lei. É necessário um emaranhado processo, além disso, é obrigatório que o quilombola se afirme como tal, que diga frente aos técnicos “SOU QUILOMBOLA”, mesmo sem conhecer ou reconhecer o verdadeiro significado da palavra. Na práxis da atividade extensionista, percebe-se quanto foi autoritário o legislador ao impor um significante que nem todos conhecem, mas que por trás advém um significado compartilhado por todos. Infelizmente, muitos se aproveitam dessa falha semiótica em benefício dos que não querem a terra para quem nela vive, planta, colhe e constitui suas famílias.

A falha brutal não atinge o conceito em si, mas o significante imposto por lei, que dificulta o andar do processo de titulação das terras quilombolas, que por si só já é lento o bastante para garantir o direito efetivo das comunidades negras terem a propriedade definitiva de suas terras.

Tancredo Fernandes
Artigo publicado nos jornais A Margem e Contraponto

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