Não é de se estranhar que uma série de
avanços nas decisões dos tribunais brasileiros possam ser postos abaixo pelo
conservadorismo que ainda impera sob as togas dos ministros. Quem não se lembra
do conceito de “mulher honesta” presente no Código Penal Brasileiro até pouco
tempo? Antigamente, ou melhor, há poucos anos, se uma mulher dedicasse sua vida
à prostituição, ela não era reconhecida pelo Estado como honesta, ou seja, não
tinha nenhum princípio, honra ou valor, desrespeitava os bons costumes, sendo
esses aqueles provindos da sociedade machista e patriarcalista, por isso
poderiam sofrer qualquer violência sexual, pois prostitutas, assim desonestas,
não seriam protegidas pelo tipo penal denominado de estupro. Felizmente,
mudanças foram feitas na legislação, mas parece que nem todos os juízes andaram
aos mesmos passos do ordenamento. A título de exemplo temos a decisão recente
do STJ que absolveu um homem acusado de estuprar três meninas de 12 anos.
Segundo o Código Penal, existe a presunção de violência no ato sexual, quando a
vítima for menor de 14 anos. A decisão do Superior Tribunal de Justiça regrediu
no tempo ao ressuscitar na sua jurisprudência o conceito de mulher honesta,
dado que absolvição se baseou no fato que as meninas já praticavam relações
sexuais. Absurdamente, o Tribunal de Justiça de São Paulo, sobre o mesmo caso,
afirmou que as vítimas por se prostituírem não eram consideradas inocentes nem
ingênuas.
Infelizmente, o buraco é bem mais
embaixo. Não só as decisões dos grandes tribunais como também das varas e
comarcas do nosso país ainda ecoam uma tradição de exclusão aos direitos da
mulher. Postas historicamente abaixo dos homens, elas vivem dominadas seja pelo
pai, namorado, irmão ou avô. Uma sociedade machista não permite o
reconhecimento da mulher na sociedade. Não permite que direitos seus possam ser
garantidos, que elas possam ocupar cargos no mercado de trabalho e que tenham
liberdade para decidir sobre o seu corpo. O estupro se banaliza ao ponto da
mídia paraibana expô-lo em pleno almoço. Depois disso, jovens do município de
Queimadas se sentem no direito de dispor do corpo de algumas mulheres, que
violentadas sexualmente ainda passam pelo constrangimento social enquanto
derramam lágrimas pela morte de duas amigas também estupradas. Quais serão os
próximos fatos? Esperamos não esperar. Esperamos que não venha uma Maria da
Penha para dar um beliscão no Estado para que ele atente que a violência
doméstica é um atentado contra a dignidade da mulher. Esperamos que não
aconteçam outros casos, mas pelo suporte dado as vítimas, pela quantidade de
Delegacias da Mulher e abrigos, pelas campanhas de prevenção e conscientização,
vamos ficar a ver navios que demoram séculos a passar.
Os danos causados pelo judiciário
conservador, as marcas da violência doméstica, os efeitos do estupro são mais
que constrangimentos a mulher, são penas que elas carregam pela vida. Somente a
luta e a conscientização são capazes de alterar a atual conjuntura de opressão.
De nada adiantam as leis que ficam a empoeirar nos códigos e os discursos
vazios de inserção da mulher no mercado de trabalho, se elas continuam sofrendo
os mesmo dramas de séculos passados. As atuações nas cortes brasileiras que
agasalham o abuso à mulher não podem ser apagados com uma borracha. Não há
justificação para o injustificável. Não há brechas para a injustiça.
Tancredo Fernandes
Publicado no Editorial do Jornal A Margem
Nenhum comentário:
Postar um comentário