quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A Lei Maria da Penha e o monstrengo tinhoso

A decisão judicial nada mais é do que uma resolução coativa de um conflito que se estabelece através das relações jurídicas existentes entre os sujeitos de direito agente e paciente. A função discricionária do juiz é inclinada por valores que se constroem e princípios que se tem.

Muitas vezes a posição tomada por aquele que tem a sentença em suas mãos é extremamente conflituosa e injusta. No ano de 2006, a posição do Exmo. Sr. Juiz Edílson Rumbelsperger Rodrigues, magistrado da Comarca de Sete Lagoas-MG, diante da aplicação da Lei Maria da Penha ao caso de violência doméstica resultou numa decisão extremamente polêmica e criticada pelos mais diversos órgãos da defesa dos direitos das mulheres.

No início da sentença, o magistrado baseia seus argumentos constitucionalmente, através do Preâmbulo da C.F. de 1988, que faz referência à proteção de Deus para a elaboração da Carta Magna. Esquece-se, no entanto, que esse texto antecessor da Constituição é simplesmente um documento de caráter político, que não tem força normativa alguma. Hans Kelsen afirma que o preâmbulo tem caráter mais ideológico do que jurídico, razão por que, se vier a ser suprimido, isso não mudará o significado real da Constituição.

É evidente que o legislador brasileiro utiliza-se dos princípios catolicistas como princípios constitucionais, como é o caso da proibição do aborto. Embora não é possível excluir a laicidade do Estado brasileiro conquistada desde 1891 e indiretamente garantida no artigo 19 da Constituição de 1988. É inegável que há mais brasileiros católicos, mas as minorias umbandistas, judaicas, pentecostais, neopentecostais, mulçumanas, luteranas, budistas, ateias, agnósticas, ad infinitum devem ter o mesmo respeito, até por que são iguais perante a lei. Dessa forma, decisão judicial alguma pode se basear na Biblía, Suna ou Corão. Principalmente em um mito, no caso, o da Origem de Adão e Eva. Ora, se assim for, qualquer juiz tomaria a saga gananciosa do Rei Midas, o sonho aeronáutico de Ícaro, as aventuras de Homero, as histórias de Tupã, as peripécias do Saci Pererê e a trilogia de Harry Potter como base de suas decisões. A decisão judicial é conclusão de um encaixe de uma premissa menor – o caso concreto – em uma premissa maior – a norma jurídica. É claro, que o juiz pode-se utilizar da filosofia para a argumentação, mas desde que ela respeite o que está escrito constitucionalmente. Esse controle constitucional-filosófico é extremamente importante para evitar exageros interpretativos. Não é possível utilizar o pensamento aristotélico na divisão entre homens e escravos. Muito menos no dualismo feito desde Platão até Nietzsche que jogavam as mulheres aos pés dos homens.

A sentença do juiz mineiro reflete o pensamento imperativo do patriarcalismo, a preponderância do androcentrismo (“O mundo é e deve continuar sendo masculino”) e da convivência a violência doméstica (“Porque ao homem desta lei não será dado o direito de errar”). Incontestavelmente, o desrespeito a Constituição e a mulher são marcas profundas da decisão desse magistrado, que além de chamar a Lei Maria da Penha de monstrengo tinhoso busca argumentos infundados para comprovar a inconstitucionalidade da lei.

Enfim, o caráter discriminatório e machista da decisão revela o objetivo maior desse artigo que é encontrar os valores de uma sentença judicial. Infelizmente, alguns dos nossos magistrados não compreendem a importância da igualdade de direitos nem dos limites interpretativos. Muitos nem mesmo se utilizam da filosofia como base e outros, como nesse caso, quando utilizam fazem de má fé e ao invés de sabedoria buscam os privilégios. Felizmente pensamentos como os do juiz Edílson estão desaparecendo aos poucos na contemporaneidade, todavia é necessário ultrapassar diversas barreiras para alcançar a justiça. Se é que é possível alcançá-la.


Tancredo Fernandes

João Pessoa, 17 de fevereiro de 2011

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